Pular para conteúdo
Olá 👋🏾, eu sou
Victor
Magalhães
ele/dele
vhfmag@pm.me
vidas negras importam, vidas LGBT importam e é fascismo sim
Mídias sociais
Tema
Tema

Crescer sendo viado

Do medo e repressão de mim e do outro ao reconhecimento de que ser viado é força, não fraqueza

Pelo que lembro, eu descobri a palavra e o conceito de viado bem pequeno, devia ter uns 7 anos, enquanto brincava de esconde-esconde no condomínio onde morava. Eu que era a pessoa que procurava os outros nessa rodada e estava passando pela pracinha do condomínio quando um adolescente que estava sentado lá começou a rir, me chamou e me perguntou: “Por que você rebola tanto? Por que sua voz é tão fina? Cê é viado, é?“.

Não lembro o que respondi, não devia nem saber o que era ser viado, mas nunca mais consegui andar sem pensar que eu estava rebolando nem falar sem pensar que minha voz era fina, e que isso aparentemente me tornava viado. Ele não me ajudou a esquecer: sempre que me via, me imitava em voz fina e rebolando. O primeiro de muitos.

A memória mais antiga que tenho em que eu já me reconhecia gay é de uns 10 anos de idade, vendo as novelas que eu amava com minha mãe e minha tia. Elas sempre comentavam entre si sobre como os galãs da novela eram bonitos e me perguntavam se eu também achava. Todas as vezes eu travava e dizia que eu não tinha que achar nada, porque eu era homem. Nesse dia específico, deitado na cama, eu pensei: “quando eu precisar me assumir, vou dizer que a culpa é delas por ficar me perguntando essas coisas”.

Sempre achei estranha a noção de se descobrir gay, porque desde que comecei a pensar em sexualidade eu sabia por quem eu me interessava. Nunca houve dúvida, embate interno sobre ser certo ou errado, nem nenhuma resistência de minha parte. Eu me sentia atraído por homens, isso era um fato sob o qual eu não tinha controle e não fazia sentido debater a moral de algo inato que acontece entre pessoas que consentiram. Isso se resolveu muito rápido dentro de mim. Já o resto…

No ginásio, junto com a pré-adolescência veio o terror de ser descoberto na escola (em retrospecto: todo mundo imaginava 🤷🏽‍♂️), então passei a me vigiar muito, o tempo inteiro. O rebolado e a voz eram minhas principais paranoias, mas tudo era constantemente vigiado: meus olhares, o fato de que eu sempre fiz mais amizades com mulheres, minha simpatia pelo feminismo e pela causa LGBT… Também comecei a me sentir desconfortável falando com homens mais velhos: pensava tanto em como eu deveria falar e gesticular pra não dar pinta que eu travava. Pra meu desespero, minha avó sempre perguntava pela namoradinha. Certa feita chegou a me perguntar se eu queria “virar a mão”.

Na época eu me sentia vigiado (e talvez fosse), mas o principal vigia era eu mesmo. Nunca me aproximei das gay da escola, tive uma adolescência gay solitária. Demorei de beijar um homem pela primeira vez e me sentia atrasado por isso, sentia que a maldição de só 10% dos homens serem gays tinha me condenado a ficar só. Adolescentes são dramáticos, mas como eu encontraria alguém, estando no armário?

A história do meu primeiro beijo é divertida o suficiente pra reproduzir um tuíte sobre ele aqui:

na 5ª série uma menina armou com colegas e me prendeu no corredor na hora do recreio pra me beijar. cedi com medo de dizer não acabar me revelando como gay.

no outro dia ela me pediu em namoro e eu disse que ia pedir a minha mãe pra ganhar tempo

aí ela sentou no colo de um menino (que eu achava bonitinho, inclusive rs) e eu fingi ciúmes pra terminar 🤷🏽‍♂️ — tuíte por mim mesmo, ligeiramente editado

Certa feita, um amigo que eu muito admirava me disse algo como: “existem dois caminhos para quem cresce sendo gay: ou você é afeminado e se aproxima de outros gays, mas sofre discriminação aberta; ou você é encubado e não se aproxima de seus iguais, mas se protege da discriminação”. Discriminação ou isolamento de seus pares. Escolhi a segunda opção.

Mais tarde, descobri o Grindr. Marquei inúmeros encontros pros quais nunca fui, porque tinha medo de roubarem meus órgãos, então não consegui dar meu primeiro beijo gay por lá. Me perguntava quem teria o primeiro beijo gay antes: eu ou a televisão brasileira. Mesmo não trazendo o famigerado beijo, o Grindr me trouxe descobertas: parece que homens gays se subdividem em ativos, passivos ou versáteis; e discretos ou afeminados. Na época, optei por ser discreto. Já dispensei muita gente legal “por serem afeminados”. Comecei a me ver como um “homem que gosta de homens” (ou “HxH”). Descobri a possibilidade de ser gay sem os estereótipos dos gays das novela de então: fiéis escudeiros de mulheres fortes, hilariamente irreverentes em sua feminilidade, sempre venenosos, sempre com os mesmos trejeitos, basicamente sem vida própria. Ser gay sem ser bicha, ser gay sem ser viado.

Foi terrível, mas foi bom também. Minha homofobia nunca foi tão forte, mas eu descobri a diferença de expressão de gênero e orientação sexual, ainda que não com essas palavras. Uma lástima que junto a isso eu tenha aprendido a valorizar a masculinidade tóxica e diminuir as maravilhosas masculinidades das bichas e dos viados. Não xingava, não agredia de forma direta, mas me afastava, tentava me dissociar. Em conversas, defendia o direito deles de serem e agirem como lhes é mais natural, como mais lhes agrada; mas tinha pavor de ser visto como um.

Poderia listar algumas outras agressões dessa época, como quando uma pessoa do meu círculo de amigos do condomínio dizia que tinha visto no Festival de Verão “a coisa mais nojenta do mundo: dois homens se beijando”. Eu disfarçava o incômodo, mas aquilo ficava comigo. Poderia muito bem ser eu: em todos os Festivais de Verão em que fui, eu “me perdia” logo no comecinho e ia pra tenda eletrônica. Foi lá que finalmente rolou o tal beijo gay. Foi antes do da televisão brasileira, afinal (ao menos do da Globo).

Eu só fui questionar minha discriminação com bichas e viados já na faculdade. Continuava me recusando a ficar com afeminados, mas tinha cada vez mais dificuldade em embasar essa “preferência”. Um dia, depois de ter recusado um viado lindo, me perguntaram: “você não é seletivo demais não?” Cheguei à conclusão de que sim. Ficamos no dia seguinte. Daí em diante foi uma avalanche: me divertia cada vez mais me referindo a mim no feminino, brincava com minha própria rebolada, com minha voz fina, dizia mais uma vez que era viado em voz alta e em público, só pra mais uma vez presenciar o mundo não ruir ao meu redor.

Quando estava planejando o intercâmbio, pensava: um novo começo, uma oportunidade de nunca precisar me assumir por nunca ter me escondido. Um dia, já no intercâmbio, estava em um caminhão com uma amiga lésbica e um colega que calhava de ter carteira de motorista de caminhão, fazendo minha mudança da residência onde morava pro apartamento que aluguei. A gente tava conversando, daí em algum momento falei algo que deixou clara a minha orientação sexual. Ele ficou visivelmente desconfortável. Falei: “ah, eu sou viado”. Ele: “aaah, não fala assim” (🙄). Eu: “mas eu sou, ué”. Depois minha amiga comentou “você foi completamente aleatório, tava só afim de se assumir, né” e riu. Não tinha contexto pra falar isso, ficou estranho, torta de climão. Mas, pra mim, foi uma vitória. Me referi a mim como viado que sou, viram isso como ofensa e tentaram colocar panos quentes, e eu firmei pé em me identificar como tal.

Pra mim, ser viado é tomar posse de sua expressão de gênero. Sou homem, sim, mas não preciso ser o cabra mais macho do sertão por isso e, principalmente, não preciso compensar minha orientação sexual tentando ser duas vezes mais macho. É saber que você, diferente de muitos homens ao seu redor, ousa brincar com os limites do feminino e do masculino, se sente honrado em ser comparado com mulheres ou endereçado como uma (e o faço eu mesmo, às vezes só pra deixar os mais travados desconfortáveis) e em expressar fragilidades e vulnerabilidades, é transformar em elogio e em identidade o que é amplamente usado como ofensa, é desafiar sempre e todos os dias a noção do que é ser homem em nossa sociedade machista, homotransfóbica e patriarcal. No fim das contas o LGBT é, como o nordestino, antes de tudo um forte.

Essa foi a minha jornada de gay a viado, passando pela infeliz fase do “homem que gosta de homens”, e é por ela que nesse dia do Orgulho LGBT (e em todos os dias) eu me orgulho de ser viado. Muito orgulho a todos, a todas e a todxs! 🌈


Esse artigo foi postado originalmente no blog de Victor Magalhães.